Clave de Sons #1. Ano novo e o transatlanticismo temporal
A abertura de um disco que encapsula os sentimentos da passagem do tempo.
Suspire-se. Já foi ultrapassado o momento em que uma contagem decrescente de um tempo que se assume como factual foi iniciada, tendo sido dado por terminada quando um algarismo (neste caso, noutros, podem ser dois, três ou quatro no caso mais raro) se deu a trocar pelo próximo que lhe segue na sequência. Assim é o final de um ano, assim é o início do próximo.
Com o incrementar dos algarismos que ditam a minha própria idade – o chamado crescer - a ideia associada ao conceito de Ano Novo foi sofrendo mutações. Primeiro, surgia parte de um êxtase pela meia-noite, onde os tachos batidos em euforia conferiam a banda sonora de fundo para os foguetes se replicarem a esbater-se por todo o céu, iluminando o breu da noite escura e fria que se dava a apresentar ao novo ano.
Essa euforia, entretanto, foi substituída devido à tal mutação, transformando-se numa certa apatia e ansiedade pela chegada desse avançar de sequência, que quase resulta num olhar grinchiano para todo este processo de troca de algarismos que avança um ano na cronologia da vida. Claro está que esta apatia não vem só, mas surge sim como parte de todo um processo que se inicia com a aproximação das doze baladas. Um nervoso miudinho que culmina num êxtase momentâneo (quase a lembrar o momento de bater nos tachos de criança) que se estende poucos segundos após esse momento, seguido rapidamente da apática ressaca aquando da realização que, na realidade, nada se alterou.
No entanto, se ao invés de tentar afastar-me desse pensamento – quiçá, nefasto - nas últimas ocasiões de transição de algarismos decidi adotar uma postura mais de aceitação para com este. Tentar olhar para ele como parte do avanço de ano e encapsulá-lo no momento de alguma forma. Por outras palavras mais remendadas, tentar encontrar um escape que passasse a associar a toda a ideia de mudança de ano. Entre na cena: música.
Nas primeiras duas tentativas deste olhar, decidi deixar-me à deriva das oferendas de um botão de shuffle, mas após ter calhado o infortúnio de levar com a voz do Morrissey como a primeira coisa que ouvi num novo ano, decidi que tal desastre não podia voltar a acontecer. Há azares que não se querem, vá. Procurei, então, encontrar uma cantiga que representasse o toda a amalgamação de sentimentos que se sentavam em redor da fogueira das doze baladas. A resposta acabou por surgir na forma da faixa de abertura de Transatlanticism, terceiro disco da banda americana Death Cab for Cutie, lançado em 2003. O seu nome? ‘The New Year’ – claro está.
A forma como ‘The New Year’ abre, voando do seu silêncio inicial, é um momento que soa como se o fogo de artifício tivesse a explodir pelo céu em forma de guitarras cintilantes e eufóricas. Há uma nostalgia inerente ao som das guitarras de Transatlanticism, bem evidente logo na sua faixa de abertura, criada muito em parte pela produção que Chris Walla, guitarrista e teclista do grupo à altura, incute no som do grupo. É uma melhoria face ao disco anterior do grupo, The Photo Album nesse campo, levando a que Transatlanticism soe polido e nítido. Há um trabalho para que as canções tragam um espaço especial para essa nostalgia, essa sensação de longing por algo ou alguém, ao longo de todo o disco, servindo de eco às letras sombrias, saudosas e ansiosas que Ben Gibbard, vocalista, guitarrista e letrista principal do grupo, colocou no papel.
Em ‘The New Year’, isto é rapidamente observado. No primeiro explodir de guitarras que se faz ouvir, Gibbard canta “So this is the new year/And I don't feel any different", de tal forma que revela logo uma apatia enorme para o evento e local onde se encontra, uma festa de Ano Novo que o grupo tenta encenar da melhor forma como conjunto. Não é ao acaso que ‘The New Year’ é a única canção de Transatlanticism que confere créditos à banda inteira. E é na junção entre a grandiosidade intimista de ‘The New Year’ e a narrativa rica criada por Gibbard que surge o encapsulamento perfeito dos sentimentos nos quais me revejo quando se aproxima o momento da mudança de algarismos. É a apática beleza em perceber que nada se alterou, de que o momento de vivência que o narrador vive é apenas isso – um momento em que tudo se esquece, em troca de uma euforia passageira. Será isto o Ano Novo, então? A resposta é um pouquinho mais complexa, e temos de ir mais longe na faixa e no disco.
Após o terminar da primeira implosão de guitarras, a segunda parte da faixa serve ambas as funções de se apresentar como a continuação da narrativa, mas servindo também de introdução para o tema principal do disco – relações à distância. A palavra Transatlanticism que dá nome ao disco é uma palavra inventada por Gibbard que, de acordo com a crítica escrita por Ian Cohen aquando do décimo aniversário do disco para a Pitchfork, “define o espaço emocional incompreensível entre duas pessoas separadas por distâncias compreensíveis” – um espaço continental, um oceano, um dormitório ou um corredor. Distâncias grandes ou pequenas, marcadas sempre por uma saudade nostálgica que quase se revela como uma filosofia: o transatlanticismo.
A distorção de ‘Tiny Vessels’, no entanto, revela um problema com a filosofia do transatlanticismo, que requere uma certa distância desta. Se Transatlanticism surge como um disco triunfante e ganha muita da sua substância pela forma como Gibbard utiliza o narrador para narrar os acontecimentos e memória de uma forma que soa pessoal – mesmo que não o seja – essa narrativa nem sempre soa como a mais saudável. Há vários momentos no disco em que o narrador parece não conseguir exprimir o que sente, não é sincero nem consigo mesmo nem com a pessoa com quem está. O verso que abre ‘Tiny Vessels’ encapsula bem esta noção das coisas: ‘This is the moment that you know/That you told her that you loved her but you don't/You touch her skin and then you think/That she is beautiful but she don't mean a thing to me’. É tóxico e misógino, disso não há dúvida (sinal dos tempos nefastos que se viveram para essa questão no início da década de 2000).
A própria forma como Gibbard canta estas letras e outras tantas de Transatlanticism – de uma forma que quase nem se apercebe do que está a relatar – talvez revele mais sobre o próprio cantor do que desejaríamos saber. No entanto, a penúltima faixa do disco, a catártica ‘We Looked Like Giants’, com o baixo de Nick Harmer a marcar passo, revele talvez que há um certo de arrependimento por as suas ações do passado, relatadas ao longo das memórias transatlanticistas que preenchem o disco. Gibbard canta “I've become what I always hated/When I was with you then” e paira um ar de incerteza no instrumental, uma ansiedade de que talvez não seja possível livrar.
A própria ‘The New Year’ não consegue fugir a este tipo de pensamentos, especialmente quando tido em conta a inspiração para a faixa. Na sua presença do programa da VH1 Storytellers, em 2011, Gibbard explicou que o narrador desta faixa não era uma versão esmiuçada de si mesmo, mas uma rapariga ficcional, criada a partir de várias mulheres que este havia conhecido ao longo do tempo. “Esta canção é sobre uma pessoa que veio até mim um dia e disse que queria que escrevesse sobre ela”, relatou. É a conjugação de várias memórias de diferentes momentos num só momento perfeito, recheado de melancolia, mas que na escrita de Gibbard, se torna self-indulgent e, por consequência, tóxico. Ao analisar a demo de ‘The New Year’, presente na versão do disco lançada para comemorar o seu décimo aniversário, estes sentimentos são ainda mais relevados, com a sua posição mais como uma canção folk do que a vertente indie rock que caracteriza a versão final da cantiga, cuja expressão se revela mais ambígua e catártica, mas sem perder nenhuma da melancolia inerente.
Claro está que, depois de colocarmos estas cartas na mesa, a associação de ‘The New Year’ ao evento de Ano Novo tem talvez mais que se lhe diga. Todavia, quando incorporada em toda a narrativa no disco, pode-se olhar para ‘The New Year’ como o início de um ciclo após a tirada das ilações finais sobre uma ou várias situações.
É a aglomeração de múltiplos sentimentos num só local, uma transição entre euforia e apatia, a realização de que os momentos – uma palavra mais sumarenta que erros ou memória - do passado se mantêm na bagagem. Com as ilações certas retiradas, a inferência e disposição certa para o momento da transição de algarismos seja exatamente essa. Talvez, seja essa a máxima final a reter da filosofia do transatlanticismo, onde a nostalgia, a sombra da dor do passado e a esperança do futuro se encontram a beber café no mesmo local. É assim a manhã de um Ano Novo, mesmo se não nos sentirmos particularmente diferentes.