Clave de Sons #14: Entrevista com roadkill, o "novo" disco de Jack White e recomendações de julho (e junho)
Tenho passado os últimos dias a ouvir o “novo” disco do Jack White. Ainda não se sabe bem o título (os rumores apontam para que se possa chamar Déjá Vu ou RIP IT, mas é possível que não nenhuma dessas possibilidades), mas duas certezas já se sabem. 1) é o regresso de Jack White às suas raízes do blues rock carregado de fuzz, 2) é bom. Aliás, é muito bom.
Algum contexto. Há cerca de duas semanas, vários clientes (sortudos) de múltiplas lojas da Third Man Records (a editora/loja/all-around cena fixe do qual White é um dos fundadores e donos) receberam um vinil extra aquando das suas compras. O vinil, empacotado num embrulho branco simples e intitulado apenas de No Name, era uma prensagem especial daquilo que agora sabemos ser o sexto álbum a solo do fundador dos White Stripes, The Dead Weather e The Racounteurs. Entretanto, já se sabe o nome das faixas e prevê-se que o lançamento ocorra nos próximos tempos (se calhar já esta sexta-feira). Enquadramento suficiente? Acho que sim.
(Há um ângulo a refletir sobre como o Jack White lançou este disco. Tal como o Guardian assinalou, há algo nesta estratégia que relembra a forma como os SAULT lançaram vários discos em 2022 ou todo o discourse em torno do disco deste ano da Cindy Lee. Parte da razão que o White pode fazer algo assim é porque a Third Man Records tem a sua própria fábrica de vinil. Ou seja, como assinalou o Pedro Hollanda na sua newsletter, White detém os seus “próprios meios de produção” e isso permite-lhe fazer este tipo de estratégias de “guerrilha” contra a precariedade das plataformas de streaming.)
Sou um tremendo fã de White Stripes e, apesar de gostar bastante do trabalho a solo de White, acho que é algo inconsistente. Apesar de este novo disco ser bom porque não tenta ser algo mais que Jack White a fazer música rock – e é precisamente por isso que é bom –, o meu disco favorito do White a solo é talvez o “menos” Jack White: Boarding House Reach (2018). Megalómano? Sem dúvida. Recheado de bangers? Yep. Prefiro Lazaretto (2014) a Blunderbuss (2012), mas sinto que ambos estes discos sofrem do mesmo mal que sofrem os dois mais recentes discos que White lançou em 2022, Fear of the Dawn e Entering Heaven Alive (são discos-irmãos). Têm grandes canções, mas como discos, ficam um bocadinho aquém.
Porém, este No Name, como o ainda chamamos, é extremamente consistente. Aliás: é o disco a solo mais consistente de Jack White do início ao fim. Ao longo dos seus quase 45 minutos de duração, No Name praticamente não perde qualidade. E como se isso não bastasse, White praticamente não tira o pé do acelerador neste álbum. É malha atrás de malha, fuzz atrás de fuzz, riffagem de alta qualidade atrás de riffagem de alta qualidade. O único momento em que No Name abranda é “Underground”, a nona canção do disco, onde as experimentações que marcaram o trabalho a solo de White pós-Lazaretto se juntam para um número de blues carregado ainda assim de pujança. Em bom inglês: it rules. Logo a abrir, “Old Scratch Blues”, prova isso. É uma canção fantástica, o tipo de devoção a Jimmy Page que White consegue escrever de olhos fechados. A fechar, a dose pesada de “Terminal Archenemy Endling” garante que vamos reouvir este disco muito rapidamente após terminarmos a sua escuta.
Há bastantes momentos de No Name que lembram, efetivamente, os White Stripes. “Morning at Midnight” (riffagem duríssima), “Bombing Out” (soa a algo que poderia estar em De Stijl), e “Missionary” é o tipo de canção onde a bateria de Meg White aparece como um fantasma de fundo – podia bem ser ela por trás do kit. Em bom português: soa bem, soa excelente.
Claro que, por muito que Jack White tenha regressado às raízes, as suas experimentações a solo não são esquecidas. Em No Name, elas ainda existem, mas a experimentação surge apenas como um extra às canções. “Archbishop Harold Holmes” podia ser uma faixa perdida de Boarding House Reach (escutamos nela o melhor “rap” de sempre de White!). “Bless Yourself” e “Tonight (Was a Long Time Ago)”, esta última com um dos melhores refrões que White já escreveu, podiam ter aparecido em Blunderbuss e seriam das melhores faixas desse álbum.
Há muito com certeza que será escrito nas próximas semanas sobre este disco do Jack White. Afinal, se o rock está verdadeiramente morto (não está!), há sempre uma chance que o maior “messias” do rock das duas últimas décadas o possa ressuscitar. Se White andou uns bons anos a experimentar e a tentar fazer statements artísticos, este No Name é um lembrete do que é capaz de fazer quando se reduz apenas ao essencial: uma guitarra, um pedal de fuzz, uma banda, e a sua capacidade intransponível de escrever grandes canções. Enorme disco – um dos melhores de 2024.
Recomendações de julho (e de junho)
Charli XCX, BRAT – Por esta altura, o brat summer está praticamente morto, mas BRAT não deixa de ser um triunfo fenomenal para a carreira de Charli XCX. Lá em cima a lutar com how i’m feeling now para o galardão de seu melhor disco.
Paira, EP01 – Estou obcecado com o EP de estreia desta dupla brasileira formada por Clara Borges e André Pádua desde que saiu. É música rock, pop, e eletrónica ao mesmo tempo. É tudo isso e muito mais – é excelente.
Dualus, IN ALIGNMENT – Mais uma prova de que os “membros” de ensemblu são as cabeças mais excitantes do hip-hop português de momento.
This Is Lorelei, Box for Buddy, Box for Star – Um dos vários projetos a solo de Nate Amos (Water From Your Eyes) é um LP cristalino preenchido por belíssimas canções de indie rock. Escuta-se e sai-se de coração cheio.
Carly Cosgrove, The Cleanest of Houses Are Empty – Se é emo? É. Se é rock alternativo? Sim. Se também tem componentes de math rock? Ora pois. Se fica no ouvido? Sem dúvida.
Joanne Robertson e Dean Blunt, Backstage Raver – Fechem os olhos e sintam. Um dos discos mais bonito deste ano.
Martha Skye Murphy, Um – A falar em fechar os olhos, o primeiro longa-duração da artista britânica também é para escutar de olhos fechados. Um exercício delicioso em como fazer art pop excitante do início ao fim. Uma Kate Bush moderna.
Cat Soup, you only 180 – Este LP de rock instrumental portuense tem toda a tecnicalidade e sentimento necessário ao género. A ouvir sem falta.
oseias., cem vozes. – Provavelmente o EP mais forte de beats que este ano será lançado em Portugal. Não fica melhor que isto.
Mabe Fratti, Sentir Que No Sabes – Mabe Fratti faz mil e umas coisas neste seu disco e faz-lhas todas bem. Quando tudo termina, estamos preenchidos e deliciados – com a sua voz, com as letras, e com instrumentais recheados de múltiplas camadas e sons. Uma maravilha.
Deejay Vega, Tudo é no Ghetto – Sem misericórdia. Para dançar até cair.
Nuno Beats, Sai do Coração – Há alguma coisa no ar na Príncipe de diferente porque Sai do Coração prossegue muitas das linhas de pensamento espirituais e afrofuturistas que Xexa estabeleceu o ano passado em Vibrações de Prata. A refletir no futuro com certeza estas mudanças, mas, por agora, um fenomenal LP de Nuno Beats a considerar para o cânone da editora lisboeta.
BLEID, Tempo A Menos – Mais um belíssimo projeto que BLEID lança este ano.
Iolanda, OLHAR P’RA BAIXO – Um EP extremamente interessante onde iolanda lida com as consequências da sua fama e abre o jogo para aquilo que poderá fazer no futuro. Ler crítica no Rimas e Batidas
7777 の天使, Life In Heaven – Swan Palace e DRVGジラ fizeram um disco em que se tornaram o projeto português mais próximo das novas conceções daquilo que é o shoegaze na sua fase de TikTok (não pejorativo).
ARCANA, BAILE DE PERUCA – Um disco especial onde cabem mil e uma identidades e sons diferentes e que se transforma numa libertação coletiva. É, para já, um dos grandes discos lançados em Portugal em 2024.
Clairo, Charm – Fica um degrau abaixo de Sling, mas Charm é um disco maravilhoso onde Claire Cottrill abraça os seus dotes como cantautora dos anos 70.
Adorável Clichê, sonhos que nunca morrem – Por amor de Deus, o Brasil tem algum do shoegaze mais excitante do mundo e os Adorável Clichê são mais uma prova disso. Disco estonteantemente belo.
trndytrndy, Virtua – Há uma nova era para o vaporwave a vir ao de cima e este projeto é prova disso.
Total Blue, Total Blue – Ouçam. Acreditem em mim. E de preferência, com algum estímulo “extra” a acompanhar este new age jazzístico.
roadkill: um duo sem medo de cantar as suas emoções
“I’m sorry for exploding / There’s a black hole in my chest”
Abrir um disco desta forma requere coragem. Não haja dúvidas disso. E os roadkill têm bastante. Como se isso não bastasse, têm talento, ética de trabalho, e o dom da palavra. Mas acima de tudo, têm canções. Esta, “Black Hole”, é a primeira do seu álbum de estreia, o belíssimo What to Do When the Earth Swallows You Whole. Foi também a primeira canção que Lucas (aka antematterz) e Nia fizeram em conjunto.
“O Lucas mandou-me a ‘Black Hole’ e percebi que estávamos na mesma página”, conta Nia. “Por causa disso, todo este processo foi fácil”, acrescenta.
Fácil não é a palavra mais fácil para descrever a experiência de digerir What to Do When the Earth Swallows You Whole. As canções que os roadkill cantam neste disco são sussurros de traumas distantes que parecem tão perto, o último respiro de uma relação prestes a colapsar dentro de si mesma. Soam, portanto, a estrelas cintilantes a transformarem-se no buraco negro que, à sua volta, engole tudo. No final, ficam só os pozinhos em forma de memória.
Mas para Nia e Lucas, desde o momento em que se conheceram, através da sua amiga Ana, a sua manager e booker, tudo foi efetivamente fácil. “Percebi imediatamente que éramos farinha do mesmo saco e percebi que ia dar certo”, relembra Nia sobre o que sentiu após encontrar-se com Lucas pela primeira vez. Antes de se conhecerem, estes dois caranguejos que sentem bastante (como qualquer caranguejo), já eram fãs mútuos da música um do outro. Enquanto antematterz, Lucas preencheu corações tristonhos com o folk lo-fi de Split Second (2021); Nia, por outro lado, editou Start a Fire, um EP gravado apenas com o microfone dos fones que já não se encontra disponível online. “Há músicas desse EP que ainda tenho guardadas e gosto muito”, brinca Lucas.
Ao longo de What to Do When the Earth Swallows You Whole, a química musical que existe entre Lucas e Nia torna-se evidente. Ambos têm muito para dizer e a voz de ambos parece servir como ombro amigo um do outro. Quando damos por isso, estamos a lacrimejar ao som de “Older Soon” ou a sentir todos os sentimentos do mundo quando as guitarras shoegazianas de “Cult Song” explodem em mil pedaços como se de um coração se tratasse. Se isto são as tormentas de Lucas e Nia, elas ecoam as nossas.
Não dá para escapar às influências que os roadkill tão bem pregam neste álbum, do emo existencialista ao folk intimista. A influência mais óbvia de todas, porém, aquela cuja comparação é inevitável, são os Better Oblivion Community Center, o duo que juntou Phoebe Bridgers (cujo disco Punisher é uma das grandes referências para a produção de What to Do When the Earth Swallows You Whole) a Connor Oberst dos Bright Eyes, a banda favorita de sempre de Lucas. A própria descrição que ambos fazem da sua poesia aponta nessa direção: os roadkill são os Better Oblivion Community Center de Lisboa.
“A nossa escrita é mesmo diferente”, aponta Nia. “Eu escrevo como uma pessoa que leu a Bíblia 70 vezes e o Lucas escreve como um puto do Tumblr da melhor forma possível”, elabora.
“Nós temos sempre um bocadinho de nós na nossa música”, reflete Nia. “Uma das partes mais fixes disto é trabalhar com alguém que sabe navegar os sentimentos tão bem e transformá-los em palavras”, conta Lucas. A admiração é mútua, mas Lucas não perde tempo em explicar algo sobre a escrita de Nia: “Às vezes fico mesmo chocado com a maneira como ele coloca as cenas em palavras de uma forma que nunca conseguiria fazer”.
Talvez esteja aqui o segredo para esta relação musical. A relação de amizade – Nia e Lucas tornaram-se melhores amigos a partir do momento que começaram a fazer música juntos – permite que os roadkill funcionem como um espaço seguro onde podem partilhar tudo. De desejos a dores, de traumas a felicidades, de depressões a euforias. Existe um complemento e não existe medo de esconder nada. Em “Limbs”, magnífico folk perdido entre Sufjan Stevens e os Bright Eyes, quando as suas vozes se juntam no final para cantar “Next time / I'll try / I'll try to start a fire / Til the silence in my eyes / Turns into desire”, tudo se liga. Os roadkill transformam-se numa entidade só: numa estrela capaz de perfurar o nosso coração. “Não queremos esconder nada do que estamos a sentir”, reflete Nia. “Eu, mesmo sendo mega deprimente e mega emo, acho que nada disto é uma cena negativa”, conta Lucas.
Está correto. Nada disto é negativo. Como outros nomes em Portugal têm feito, de Calmness a Dispirited Spirits ou Bonança e bbb Hairdryer, os roadkill são mais uma peça num tabuleiro de xadrez preenchido por jovens sem medo de verterem cá para fora as suas emoções, tanto herdeiros de uns Death Cab for Cutie ou Car Seat Headrest como da componente emotiva das Pega Monstro ou de Éme. É neste cruzamento de públicos e cenas musicais onde existem os roadkill.
“É mesmo fixe ver que as pessoas se relacionam com as coisas malucas que pensamos”, conta Lucas. “É gratificante saber que o que estamos a cantar ressoam com outros”, reflete Nia.
O futuro, por muito tristonha que seja a música dos roadkill, parece sorridente para o duo. Têm tocado ao vivo – já apresentaram o disco em Lisboa e no Porto – e já estão a pensar em novas canções. Uma delas, “Funny”, foi relevada no recente concerto que deram no Maus Hábitos. É sobre precisamente estes concertos que têm dado, acrescentado uma camada extra à verdade dos roadkill. Cada canção sua encapsula um momento específico da vida destes jovens. Com sorte (ou azar, dependendo da perspetiva), estas canções também se podem tornar nossas.
P.S. O Paulo André Cecílio tem razão - os roadkill não podem permanecer um “segredo” apenas reservado a melómanos.
Os roadkill tocam na próxima edição do festival Ano Q que decorre no Barreiro nos dias 20 e 21 de setembro.
Recomendações dos roadkill
Artista
Lucas: Katie Dey
Nia: GNR
Álbum
Lucas: Japanese Breakfast, In The End It Always Does
Nia: My Chemical Romance, I Brought You My Bullets, You Brought Me Your Love
Filme
Lucas: Jane Schoenbrun, We’re All Going to the World’s Fair
Nia: Gregg Araki, Mysterious Skin
Livro
Lucas: Benjamin Hoff, The Tao of Pooh
Nia: bizarrestars, Crimson Rivers
Prato
Lucas: Bitoque
Nia: Abacaxi cortado do Continente
Desejo para o futuro
Lucas: Um tour bus
Nia: Ficar famosa