Clave de Sons #23: Os meus EPs nacionais favoritos de 2024
#10: Clauthewitch – Begonia (Maternidade)
Begonia soa fresco como a flor que lhe dá nome. O curta-duração de estreia de Clauthewitch, o projeto que junta Cláudia Noite a Nico Eon e Diogo Lourenço, é shoegaze em contacto com o zeitgeist atual do género. É sonhador e orelhudo e junta certas sensibilidades multi-género (neste caso, um folk etéreo que faz lembrar os primeiros registos dos Cocteau Twins) que não obedecem aos cânones impostos por Loveless.
Em momentos, podemos afirmar que Begonia soa demasiado “limpo” para ser propriamente shoegaze – é mais dream pop. Mas isto é conversa de pretensiosos que gostam demasiado shoegaze… e eu sou alguém que gosta demasiado de shoegaze. Independentemente disso, Begonia conquistou-me. O universo onírico de “NANA”, canção belíssima, entranhou-se como seda. E a estrutura fragmentada de “Child’s Eyes” é a prova que Clauthewitch é um projeto com pernas para andar e, acima de tudo, ambição.
#9: MaZela – Desgostos em Canções de Colo (Skud & Smarty)
“Entre amor e ódio / O caminho é estreito / Aprendemos sempre, a torto ou a direito”, canta Maria Roque, ou seja, MaZela, em “Entre Amor e Ódio”, acompanhada por guitarrinhas melancólicas. Ao fazê-lo, reflete as contradições do que é viver, do que é sentir.
Em Desgostos em Canções de Colo, EP de estreia da vencedora da edição de 2024 do Festival Termómetro, são esses sentimentos que Maria canta, e canta muito bem. Estas são canções que vivem do protesto (a influência d’A garota não, com quem MaZela colaborou em “Canção a Zé Mário Branco”, é notória), da liberdade e da capacidade de lutarmos por ela. Escutá-las é imperativo – e MaZela tem potencial para ser uma das nossas grandes cantautoras.
#8: Girls 96 – 1996 (Maternidade)
Por esta altura do campeonato, estou extremamente farto de ouvir falar de indie sleaze e derivados. Pessoas que inventam termos simulacro para merdas que não aconteceram deviam ser julgados em praça pública e a conceção do indie sleaze é um crime de apagamento da história do que realmente aconteceu na década de 2000. Se quiserem ler-me a escrever sobre esse assunto, esperem mais um bocado – há um texto na próxima revista do MIL sobre esse assunto.
Posto isto, gosto muito de 1996, o primeiro EP de Girls 96, projeto que junta Ricardo Gonçalves a Paloma Moniz. É uma mistura entre as conceções sonoras atuais de projetos como Snow Strippers ou Bassvictim (um choque Girls 96 não ter tocado no Mucho Flow deste ano… teria sido perfeito) com o espírito electrocash de projetos do passado como Fischerspooner ou os primeiros lançamentos de LCD Soundsystem. Muito texto para dizer que 1996 tem bangers e que Girls 96, ao contrário de muitos outros projetos que poderiam ser descritos como sleaze, não é nada “Insuportável”. Pelo contrário. É muito fixe.
Ler entrevista no Rimas e Batidas
#7: Deejay Veiga – Tudo é no Guetto (Príncipe)
Chegamos ao clássico de qualquer lista de melhores discos portugueses: um lançamento da Príncipe Discos. Nesta lista de EPs, surge o mais recente curta-duração de Deejay Veiga: Tudo é no Guetto.
Em Tudo é no Guetto, Deejay Veiga não perde tempo em incendiar a pista de dança. A abrir, “My Mind” transporta-nos para a batida que é tão característica da Príncipe; “Sem Nome” e “Boiler Room” (a minha faixa favorita do EP) levam-nos numa estrada escura rumo ao club; “Tudo é no Guetto” recebe-nos em casa, na margem, como só alguém como Deejay Veiga nos poderia receber. É de dançar e bailar até cair, sim, mas isto também é música para refletir. Nunca sozinho, claro. E sempre numa cave suada.
#6: Divã – Filho Prodígio (Edição Independente)
Os Divã cruzam Porto com Lisboa. Dividem-se entre as duas cidades. Nery (voz, saxofone) e Salvador (bateria) são de Matosinhos, Milho (guitarra) é de Almada, Francisco (guitarra) é de Carcavelos, Mafalda (baixo) é de Mafamude. São góticos e melancólicos, estridentes e românticos. Herdeiros de uns GNR ou de uns Mão Morta, de uns Maruja ou de uns Marquise.
Em Filho Prodígio, passado e presente unem-se. A poesia é fatalista, os instrumentais não menos. Quando “Joelhos” explode em cacofonia, já fomos acorrentados pelos Divã às suas costuras, aos seus limites. A partir daí, só nos conquistam mais. O riff principal de “1001 Noites” é delicioso. “Ponto-Morto” tem ruído a dar com o pau. “Morte em Abrantes” mostra que os Divã têm muitas pernas para andar daqui para a frente. Potencial não falta.
#5: BLEID – Endless Love (surf)
Gostei praticamente de tudo aquilo que BLEID lançou em 2024 – zero maus projetos –, mas Endless Love foi aquele que mais conquistou e aquele a que mais regressei.
São cinco malhas que sobrevoam a eletrónica e que acabam a desaguar num ambient onírico, onde tentamos que as ansiedades se transformem como parte da nossa segurança. Nos meus momentos mais doomer de 2024, este EP esteve lá para mim. Uma (triste) maravilha.
#4: Wugori e Pedra – Raio de Luz (Sotão)
Sempre que Wugori volta a rimar, a música portuguesa fica de melhor saúde. E quando Wugori volta a rimar e os instrumentais são da autoria de alguém como Pedra, então melhor.
Em Raio de Luz, o rapper da Amadora cospe com o veneno descontraído que lhe é característico, adaptando-se que nem uma luva aos beats jazzísticos e livres de Pedra. Neste casamento, a probabilidade de divórcio é nula. Os votos estão alinhados e Wugori e Pedra não perdem em tempo a fazer o que fazem melhor: grandes sons. Raio de Luz está cheio deles. E até quando eu vou preferir hip-hop tuga abstrato à escola norte-americana de MIKE e companhia? Não sei…
#3: Carolina Miragaia – exobiological (æ)
Será que no futuro vamos olhar para os Vem Veneno como um dos embriões mais talentosos do final da década de 2010 da música portuguesa? A olhar para o espólio a solo de Carolina Miragaia (e não só), é bem possível.E também é possível que a Carolina Miragaia, cantautora, seja superior à Carolina Miragaia, produtora de música eletrónica, mas exobiological é fixe, muito fixe, excelente e viciante.
Em exobiological, onde Carolina cruza tecnologia com a natureza, refletimos, dançamos. Estas são malhas perdidas entre o IDM (alerta uso da expressão IDM) dos anos 90 com a eletrónica contemporânea de uma Kelly Lee Owens. Vamos numa demanda conjunta que só termina quando nos encontrarmos a nós próprios. Uma delícia.
Ler entrevista com Carolina Miragaia na Playback
#2: Reia Cibele – Reia Cibele (Edição Independente)
No pós-Hetta, era natural que surgissem outros fragmentos de screamo em Portugal. E os Reia Cibele, nesse puzzle, foram a peça que mais incêndios causou em 2024. Bruno, Vasco, Micas e Martim não têm pudor no ruído que fazem e, acima de tudo, fazem-no bem.
No EP de estreia homónimo, os Reia Cibele jogam entre o metalcore de uns Converge ou Botch com o screamo de uns Pageninenitynine ou Orchid. Apresentam música libertadora, suada, agressiva. E nós ficamos sem querer mais nada menos do que isso. Se todas as bandas soassem como os Reia Cibele e quisessem saber da scene como eles, o mundo era melhor. Entendam isso.
#1: zé menos e Pedro O Mau – quatro partos (Biruta)
Constatar que zé menos é um dos grandes poetas da língua portuguesa atual é mais do que uma opinião. É um facto. Se o chão do parque foi um dos grandes discos de hip-hop da década de 2010 na tuga, quatro partos, onde zé menos se junta a Pedro O Mau (aka VULTO), é um gigante EP onde a palavra brilha. No caso de Zé Poças, sempre brilhou. Mas em quatro partos, brilha mais um bocadinho.
Entre existencialismos, protestos, liberdade, e tentar descobrir – e assumir – quem é, zé menos canta as suas inseguranças, as nossas. As minhas, de certa forma, cantou. Sempre me senti dividido entre quem era e quem queria ser, entre quem sou e quem quero ser. Todos os dias, uma nova luta. Contra mim, contra as vozes. No espaço dos instrumentais de Pedro o Mau, a lembrar os “seus” ALMA ATA, encontrei alguma paz.
Em quatro partos, encontrei um aconchego para este 2024 caótico. Penso muito num verso específico de “quadrado azul, T vermelho”, uma das minhas canções favoritas do ano: “Eu não devia magoar-me tanto / E ser tão duro quando estou em branco / E ser um muro para quem me espanta, não”.
Ler crítica completa na Playback