Qualquer micro momento é suficiente para escrever um monte de palavras para se poder dizer bem de tudo (raramente acontece) ou mal de tudo (frequentemente). A vitória dos NAPA na 59ª edição do Festival da Canção, cuja final decorreu entre a noite de sábado (8) e a madrugada de domingo (9), é uma dessas micro ocasiões. Há coisas boas a tecer sobre a vitória da banda madeirense na “maior” montra anual para a música portuguesa. Mais importante, há coisas a refletir sobre o que isto significa para a grande e incrível indústria da música portuguesa.
Sobre a edição de 2025 do Festival da Canção, há algumas coisas a dizer. Os NAPA eram os grandes favoritos à vitória – a Blitz assim os consagrou dias antes do triunfo – e venceram com um sólido voto do júri e um forte voto do público (segunda canção mais votada da noite atrás de “I Wanna Destroy U”, de Henka). “Deslocado”, a canção dos madeirenses, ficou empatada com 17 pontos com “Cotovia”, de Diana Vilarinho – a canção mais votada da noite pelos júris –, mas venceu o concurso através do fator de desempate: o voto do público. A noite de sábado, contudo, como referiu Pedro Miguel Coelho no seu Twitter, é mais “uma evidência que se tem mesmo de acabar” com a conversão do voto do júri para uma sequência de 1 a 12 pontos. A conversão retira importância à diversificação do voto do júri, como ocorreu na edição de 2025 do concurso, e desvirtua o desfecho do festival. Teriam os NAPA ganho o FdC sem a conversão? Não - ganhava “I Wanna Destroy U”. As regras também são feitas para serem alteradas.
Se me perguntarem qual a minha canção favorita da edição deste ano, respondo que era “Eu sei que o amor”, a malha que mais me chamou à atenção a solo de Margarida Campelo até ao momento. Não era nada “eurovisiva”, tal como a dos NAPA não é, mas era uma boa canção - tal como a dos NAPA. Para canções mais eurovisivas, havia o metal tryhard da Henka (uma novelty para o Festival da Canção), o power de “Medo”, a canção de Fernando Daniel excelentemente produzida pelo Filipe Survival, e a estranheza de “ADAMASTOR”, a malha do Peculiar.
Outros termos sobre os quais se deve falar é que a Eurovisão continua a ser uma competição que aplica double standards. A Rússia não pode competir (corretamente), mas Israel pode. Na edição de 2024, a EBU, entidade responsável pela organização do concurso, não ficou particularmente fã quando vários dos concorrentes, incluindo a portuguesa iolanda, demonstraram solidariedade para com o genocídio em Gaza. Em 2025, Israel volta a participar na Eurovisão e o genocídio e a ocupação ainda não terminaram. Se calhar, existem outras formas, e digo isto enquanto fã do Festival da Canção e da Eurovisão, de expor a música portuguesa a novos públicos, não? A RTP tem meios para o fazer e faz parte da sua missão enquanto rádio e televisão pública (supostamente) fazê-lo. A música portuguesa não necessita apenas de uma montra como o Festival da Canção, mas de várias montras como o Festival da Canção. Se não forem competições, melhor ainda. O Festival da Canção até pode ser uma festa onde toda a gente se dá bem (será real ou simulacro para as câmaras?) e onde se celebra a música portuguesa, mas não deixa de ser um concurso. Quero acreditar, talvez em vão, que é possível existir um programa onde uma Inês Malheiro pode tocar no mesmo horário que o Fernando Daniel ou o T-Rex. Serei apenas um ignóbil sonhador? Se a RTP consegue inovar como consegue no digital, então acredito que também o possa fazer neste aspeto.
Posto isto, será que Francisco Sousa (guitarra), João Guilherme Gomes (voz e guitarra), João Rodrigues (bateria), Diogo Góis (baixo) e João Lourenço Gomes (piano) foram justos vencedores do Festival da Canção 2025?
“Deslocado” é uma canção maioritariamente inofensiva, mas que contém dentro de si um fenomenal momento pop que a consagra: a transição do primeiro verso para o refrão. É estupidamente orelhuda e, sim, é um “truque” que os NAPA pediram completamente emprestados aos Capitão Fausto (basta ouvir “Nunca Nada Muda” de Tomás Wallenstein e companhia para entenderem a comparação). Depois, o refrão faz o resto: “Por mais que possa parecer / Eu nunca vou pertencer àquela cidade / O mar de gente, o sol diferente / O monte de betão não me provoca nada / Não me convoca casa”. É escrita sólida o suficiente (tirando a frase “o sol diferente”, que é terrível) e ausente de abstracionismos para, à posteriori, se tornar universal. “Deslocado” é uma canção eficaz naquilo que se propõe a comunicar e isso é algo transversal à obra dos NAPA. Não requer muito pensamento sobre o que são as suas canções. Aí, talvez os NAPA estejam mais próximos de uns Azeitonas do que uns Capitão Fausto, verdade seja dita. (Este parágrafo de tentativa de analisar uma canção pop foi patrocinado pelo Todd in the Shadows).
Porém, as canções dos NAPA não deixam de estar perdidas entre indie rock despretensioso e psicadelismo seguro (safe). São canções maioritariamente sobre amores e desamores, sobre as virtudes e dificuldades de deixarmos de sermos jovens para passarmos a ser adultos (só não lhes perguntem agora sobre a temática de “760” do primeiro disco). Para quem encontrou os Capitão Fausto entre 2011 e 2016, agora uma nova geração encontra os NAPA entre 2022 e 2025. Os Nunca Mates o Mandarim são já um exemplo de que a fórmula dos NAPA funciona para um público (e algoritmo) que vê o “indie” apenas como uma estética ou uma vibe e não como uma filosofia de vida de rejeição ao mainstream. Por esta lente, talvez o Spotify seja o real vencedor do Festival da Canção de 2025. Os próximos a serem consagrados serão os G.I.R.A – guardem esta minha tentativa de ser Nostradamus no bolso.
Podia argumentar que os NAPA são um dos vários filhos e enteados dos Capitão Fausto que surgiram após Capitão Fausto Têm os Dias Contados (2016). Todavia, estaria a ser infiel à história dos madeirenses. Os NAPA surgiram em 2013 na ilha do Funchal, altura em que se chamavam ainda Men On The Couch e que ensaiavam na cave da avó de um dos membros. Mantiveram o nome até 2023, altura em que anunciaram que se passavam a chamar NAPA porque não iam cantar mais em inglês. Durante esse período, lançaram um álbum, Senso Comum (2019), que devagarinho começou a ganhar tração além da bolha do indie de Lisboa, cidade onde os NAPA se radicaram na segunda metade da década de 2010.
Em cinco anos, os NAPA passaram de gravarem um disco com a ajuda de um crowdfunding, tocarem no Sabotage (saudades) e abrirem para os Them Flying Monkeys (em março de 2020!!) para vencerem o Festival da Canção. Para uma banda da Madeira, é impressionante que o tenham conseguido. É impressionante que sejam capazes de esgotar duas datas no Musicbox, que esgotem salas consistentemente um pouco por todo o país. É impressionante que sejam distribuídos pela Universal Musical Portugal, fator que muitas pessoas parecem ter esquecido para falar sobre os NAPA. (Já agora, acredito plenamente que tenha saído a “sorte” aos NAPA de serem a resposta da Universal à Sony, que distribui o catálogo dos Capitão Fausto).
Contudo, não consigo ler a vitória dos NAPA no Festival da Canção como uma vitória para o descentralismo. Os NAPA não odeiam o “monte de betão” que é Lisboa, até porque a sua sonoridade está em total conexão com o “indie” de Lisboa. A sonoridade dos madeirenses bebe dos mesmos tropos que outras bandas de Lisboa. Dos mesmos Beatles, Beach Boys, do indie rock dos anos 2000, de como Wallenstein rosna nas canções dos CF. Se os NAPA não dissessem que são da Madeira, seria possível distingui-los de algumas das outras bandas lisboetas que surgiram nos últimos anos? Enfiá-los no mesmo saco que os Capitão Fausto e os Ganso até pode ser “fácil”, mas difícil não é de certeza. E tal como os Ganso, cuja sonoridade e estilo de produção é semelhante, também os NAPA tornaram-se virais no TikTok.
O debate sobre o TikTok e o seu impacto na indústria da música já tem vários anos (em 2021, escrevi sobre isso no Espalha-Factos), mas parece que agora chegou a Portugal com mais afinco – e muito dele será alimentado pela vitória dos NAPA no Festival da Canção. É preciso esclarecer, desde já, que o TikTok é uma ferramenta de marketing como qualquer outra e que o seu impacto na indústria e na pop não destoa totalmente face a como outras tecnologias impactaram a história da música pop ao longo dos últimos 70 anos. Agora, o que muda neste novo jogo é como o algoritmo “escolhe” quem promove – e isto aplica-se também ao Spotify e a outras plataformas de streaming e às relações que existem entre estas empresas.
A canção dos NAPA, “Deslocado”, conta com quase 10 vezes (!!) mais streams no Spotify que a segunda canção com mais streams deste ano do Festival (à altura da escrita deste artigo, era “Tristeza”, a canção do JOSH). Números nas plataformas de streaming não indicam grande coisa de real sobre o mundo da música – até porque “Deslocado” nem foi a canção mais votada pelo público –, mas não deixam de ser interessantes de analisar. Os números colossais de “Deslocado” surgem por duas razões. Uma, pela ardente legião de fãs da banda. Duas, porque a canção, devido à sua viralidade no TikTok, acabou a ser inserida em múltiplas playlists editoriais do Spotify. Quando assim ocorre, tudo fica mais fácil. A plataforma de streaming curte de ti e o resultado é: line goes up. Os números aumentam.
Porém, cautela. É preciso relembrar que estes fenómenos virais não são particularmente “justos” ou democráticos. Por um lado, o que o algoritmo “escolhe” para ser promovido não tem aparente razão de o ser. Não há uma fórmula mágica, mesmo que existam algumas correlações entre canções suficientes para perceber qual a sonoridade que o algoritmo prefere. Os Ganso, os NAPA, os Nunca Mates o Mandarim são um exemplo disso. Por outro, quem tem mais poder de compra, estará sempre na calha para ter mais ferramentas para criar a “canção” perfeita para estes cenários de rápida mutação. O que é viral hoje, não é viral amanhã. O que é tendência hoje, não será amanhã. Micro tendências existem e deixam de existir rapidamente. É mais um símbolo da informação como moeda de troca num mundo tecnocrata e feudalista à mercê do capitalismo das plataformas (platform capitalism).
Estariam os NAPA em 2019 quando estavam a lançar Senso Comum, o seu álbum de estreia (em 2023, lançaram o segundo disco, Logo Se Vê), a achar que se iriam tornar virais? Obviamente que não. Pelo menos, assim espero. Também duvido seriamente que os NAPA achassem que “Deslocado” se ia tornar viral desta forma quando a escreveram. Estariam convencidos de estar a escrever uma canção pop relacionável? Acredito que sim, mas nada desta magnitude. A sua própria surpresa ao serem coroados vencedores do Festival da Canção aponta nessa direção. Os NAPA não escolheram este caminho, mas foi aquele que acabaram a traçar por causa das regras de um jogo que eles não escolheram, pelo menos ao iníco, jogar.
Será “Deslocado” capaz de captar os corações e mentes num palco tão colossal como é o da Eurovisão? Duvido. Se os NAPA a nível nacional conseguiram que o algoritmo jogasse a seu favor, a nível internacional a competição é muito mais feroz. Como eles, outros sabem navegar o vento dos algoritmos a seu favor. Além disso, os NAPA não são performers natos como iolanda ou Salvador Sobral. Vejo “Deslocado”, e admito que posso estar aqui prestes a bater com os cornos no chão nesta previsão, mais próxima de “Jardim” do qualquer outra canção que levamos à Eurovisão no pós-“Amar pelos Dois”. E o que aconteceu a “Jardim”? Cláudia Pascoal está num lugar estranhíssimo na indústria, onde está em todo o lado e em nenhum ao mesmo tempo. Isaura, por outro lado, deixou a “máquina” das grandes editoras para fazer as coisas ao seu ritmo e à sua maneira. Em que ilha atracarão os NAPA no final deste rebuliço todo?
Em maio, os NAPA vão até Basileia cantar sobre terem saudades de casa sem dizerem a palavra saudade. Ao menos isso. Conseguirão ir até à final da Eurovisão? O tempo responderá a essa pergunta. O tempo também responderá se os NAPA serão um fenómeno ainda maior daqui para a frente ou se tornar-se-ão apenas uma nota de rodapé em como foram a maior banda que o TikTok fez crescer em Portugal e como a banda que assinalou o início do fim da era Nuno Galopim do Festival da Canção (as audiências da finalíssima também não foram nada famosas), cada vez mais dominada pelos interesses das grandes audiências. Liguei mesmo o Nostradamus, não liguei? Então, tomem lá mais uma previsão. A indústria gostou disto. Esperem tentativas de réplicas para o fenómeno NAPA nos próximos tempos.
Vale sempre a pena ler-te! Mesmo. ♡