Clave de Sons #30: Um Paraíso chamado Portugal
Na passada noite de domingo (4), fui até ao Cinema São Jorge assistir à estreia de Paraíso, documentário que relata a explosão da cultura da música de dança e das raves (ou das “ravens”, como lhes chama José Rodrigues dos Santos nos primeiros instantes do doc) em Portugal durante a década de 90. Não só gostei imenso do documentário, como tenho sentido dificuldades em não pensar nele. É um documento necessário, quase de certeza único, dos primórdios de uma scene com a capacidade para nos fazer refletir sobre aquilo que nos falta hoje. O que foi perdido, o que precisamos de readquirir para a luta continuar.
Há várias coisas a retirar de Paraíso. A explosão vibrante da cultura rave em Portugal, alimentada por festas como a do Convento de São Francisco de Assis, em Coimbra, em fevereiro de 1993 – para muitos, o “ponto de partida da cena rave portuguesa”, assinalou Joana Moreira no Observador –, em contraponto com um Portugal conservador, ainda a libertar-se das amarras de mais de 40 anos da ditadura salazarista, se é que alguma vez se libertou. Afinal, havia uma geração pós-25 de abril que procurava viver a liberdade que os pais e os avós nunca tinham tido. As sementes estavam plantadas.
Contudo, quando os eventos retratados em Paraíso decorreram, Portugal vivia um período marcado pelas políticas neoliberais do governo PSD liderado por Aníbal Cavaco Silva. Sucessivas privatizações, tensão social, protestos, a ameaça neo-nazi na noite de Lisboa, os ataques aos direitos dos trabalhadores. Havia combustível suficiente no ar para incendiar uma floresta. Ou então, para organizar festas em castelos, talvez até mais do que uma. Talvez seja esse o maior fault de Paraíso. Falta-lhe um cheirinho do contexto sociopolítico onde ocorreu a explosão da batida portuguesa. Apesar de não ser o principal foco do documentário, a presença de algum jornalista ou sociólogo como parte dos entrevistados ajudaria a ligar as histórias contadas pelos protagonistas do filme com os acontecimentos do país da altura. Um extra necessário a um, por si só, excelente documentário.
Paraíso demorou cerca de uma década até ver a luz do dia. Há cerca de dez anos, João Ervedosa (Shcuro) e Maria Guedes (Maria Amor), produtores do filme e mentes por trás da editora Paraíso, ligada à eletrónica nacional, começaram a entrevistar algumas figuras do meio da eletrónica portuguesa para um programa que partilhavam na Rádio Quântica. Perceberam que havia ali uma história para contar. O arquivo de fotografias, cartazes, vídeos, parecia existir – era preciso alguém explorá-lo e conectá-lo.
Em 2017, recrutaram o realizador Daniel Mota para gravar algumas dessas conversas. Essas conversas são a base de Paraíso, que depois aproveita a edição cirúrgica de Henrique Brazão para conectá-las com imagens e vídeos retirados tanto de arquivos pessoais como do arquivo de entidades como a RTP ou a MTV Europe. Os agentes culturais, os produtores, os DJs, contam as suas vivências da época, ligando a liberdade sentida no interior da discoteca Alcântara-Mar no final da década de 80 com a criação de editoras como a Kaos Records e o sucesso de faixas como “So Get Up” (dos Underground Sound of Lisbon). Depois, os eventos gigantes. As raves em castelos como o de Santa Maria da Feira ou Montemor-o-Velho em meados da década de 90. No final, a alcunha lá fora para Portugal: “paraíso”. Primeiro, em Total Kaos, compilação dedicada à música de dança portuguesa da época. À posteriori, pela imprensa. Em 1995, a revista Muzik, uma das mais influentes revistas de música eletrónica dos anos 90, anunciou: “A New Paradise Called Portugal”. Paralelos com os dias de hoje são possíveis de ser delineados – a ideia de Portugal como paraíso, a procura da aprovação do capital e dos olhos estrangeiros, a descaracterização da cidade e da “resistência” em prol disso mesmo –, mas a ideia principal do documentário é que, em Portugal, vivia-se um boom de música de dança. A música era excitante e as possibilidades alimentadas dentro de clubes como o Kremlin ou nas festas organizadas pela Kaos pareciam infinitas.
Hoje, editoras como a Príncipe, a HAYES, a Rotten \ Fresh, a Ovelha Trax ou a Discos Extendes, colheram as sementes plantadas nesse período e mantêm viva a energia e filosofia dos pioneiros. Como referiu a jornalista April Clare Welsh numa peça publicada no Bandcamp Daily em 2024, estas são editoras e pessoas que vivem o “espírito DIY” e que são versadas em trabalhar com espaços “pouco convencionais” para alojar os seus eventos. Paralelos. Todavia, diferenças. Se Paraíso retrata a liberdade e comunhão destes agentes para organizarem festas e baterem de caras com o estigma dos “bons costumes” portugueses, hoje espaços como o Planeta Manas, que irá encerrar as suas portas a 25 de julho, as Damas ou o Passos Manuel, sofrem com a pressão da crise imobiliária e com a crescente repressão do Estado para com estes espaços de liberdade. Como reportou A Cabine em fevereiro, no espaço de cinco meses, houve quatro rusgas da polícia ao Planeta Manas sem “ordem de tribunal”. Onde está a liberdade aqui?
É por isso que Paraíso é um objeto precioso. São memórias de outros tempos, sim, mas que são retratadas por figuras como Luís Leite, DJ Vibe, Tó Ricciardi, DJ Morgana, Alcântara Dancers ou Yen Sung, entre outros, sem soarem a nostalgia manufacturada (não é nenhum Meet Me In The Bathroom nesse aspeto). Afinal, o documentário encerra com breves declarações sobre o que poderia ter sido feito de diferente. Depois do boom, veio a queda? Parece que, de alguma forma, sim. O que terá falhado para que muitas destas estruturas não se tornassem sustentáveis? Perguntas que hoje ainda assombram qualquer estrutura independente que (alegadamente) não queira obedecer às regras do capital, do crescimento infinito.
Porém, mesmo assim, Paraíso é uma carta de amor a um período que só faz parte do presente em memória. O tempo em se arquivava tudo fisicamente, em que se tinha noção da efemeridade das coisas. As fotografias de Da Fonseca, João Curiti, Luísa Ferreira ou Rita Barros são cruciais para a execução da longa-metragem, mas são os vídeos das festas apresentados que revelam a sintonia daqueles milhares de pessoas em se unirem pela música, pela pista de dança, sem ser preciso um apagão para se lembrarem da importância do mundo real, da conexão física. Paraíso é crucial, emocionante. É o tipo de arquivo que merece ele próprio ser arquivado para no futuro ser revisitado. Vejam. E vão dançar, caramba.
Paraíso faz parte da secção competitiva IndieMusic da edição de 2025 do IndieLisboa. Volta a ser exibido este sábado (10) em Lisboa, na Culturgest, pelas 21h30 (bilhetes aqui) e no dia 17 de maio no Porto, no Passos Manuel.