Clave de Sons #32: A insularidade emo dos victoria
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Em fevereiro de 2023, fui a uma noite organizada pela Punch Magazine (coisa rara, eu sei) no Titanic Sur Mer com o pretexto de assistir a um gig dos victoria. Nessa noite, (muitos) poucos foram aqueles que compareceram e assistiram a um concerto aguerrido e cheio de coração – afinal, os victoria são uma banda bem emo – daquela que considerava ser, na altura, uma das bandas mais promissoras de música de guitarra feita neste retângulo à beira-mar.
Em 2023, já os victoria caminhavam para os quatro anos de existência e possuíam um catálogo interessante e diverso. Quase quatro anos antes, no final de 2019, Francisco Madureira (guitarra, voz), natural da ilha de São Miguel, nos Açores, e Paulo Lopes (bateria), natural de Fátima, juntaram-se no sótão de Paulo para começarem um novo projeto. Nos anos anteriores, enquanto alunos das Caldas da Rainha (Paulo estudou design, Francisco estudou teatro), fizeram parte da banda CAO (Chórus Águrus Orchestra, da qual também fez parte o aveirense ICARO), grupo de rap-rock que funcionou como escola para a dupla. Por essa altura, também formaram o trio de jam psicadélico Ghostface Chinchilas em conjunto com Francisco Verdasca, atualmente técnico de som da banda. (Para quem quiser saber, os victoria atualmente têm a sua sede de operações em Ourém, perto de Fátima).
Porém, para Francisco e Paulo começarem victoria, foi preciso circunstâncias alinharem-se. Primeiro, precisaram de sentir alguma saturação com os seus projetos anteriores. Segundo, Francisco teve de sentir a necessidade de compor coisas “fora de um projeto democrático”, como é o caso de uma banda. É ele o motor inicial de victoria, ainda antes de Paulo se juntar a ele. Terceiro, ambos terem sido forçados a abandonar o estúdio que dividiam com amigos nos Silos, local emblemático das Caldas, levando-os a começar a trabalhar em conjunto no sótão de Paulo. Assim nasceu o projeto de folk Alfazema, descrito por ambos como um misto entre Ben Howard e Bon Iver. Foi a partir de Alfazema que germinou victoria.
Para Francisco, a ideia que transformou algumas das ideias musicais de Alfazema na base para o que seria victoria pariu de uma “ideia filosófica”. “Queria tentar perceber como conseguir criar uma separação entre a pessoa que cria a arte – neste caso, eu – e a arte em si”, afirma o multi-instrumentista. A partir daí, nasceu a ideia de criar victoria, projeto que funciona como mais do que uma simples banda ou duo. É um projeto transversal a vários média, com um universo próprio, onde os elementos da banda – além de Paulo e Francisco, fazem parte dos victoria Guilherme Eugénio (baixo), Tomás Martin (saxofone) e Tiago Silva (guitarra) – coexistem com victoria, a personagem/mimo que dá nome ao grupo (e que também surge nos concertos da banda como convidado especial, sempre com alguém diferente a usar o disfarce). É a partir deste figurino que são pintadas as cores do universo da banda, e é com base em victoria – a personagem – que foi criado Color Schemes For Kitchens, o muito bom álbum de estreia dos victoria, adornado pela produção cristalina de Guilherme Simões, o principal responsável por ajudar Francisco e Paulo a transformar o seu rock lo-fi em hi-fi.
“Para o Color Schemes For Kitchens, já tínhamos tudo definido sobre a personagem e sabíamos o que queríamos fazer com a nossa música”, afirma Paulo Lopes sobre a relação entre a personagem victoria e o primeiro álbum da banda.
Anteriormente, Francisco e Paulo ainda estavam a descobrir como conjugar todo o universo do conjunto. Nos quatro capítulos de Loopbook, coletânea editada pela banda ao longo de 2021, e no curta-duração Em ponto morto, de 2022, Francisco e Paulo dizem que não pensaram muito na personagem para fazer canções. Deram mais foco em explorarem as várias sonoridades que influenciam o projeto do que em explorar todas possibilidades do universo da banda envolvido a personagem homónima. Contudo, com o passar do tempo e o afinar desses detalhes, victoria tornou-se numa figura presente na criação de Color Schemes For Kitchens. Francisco e Paulo admitem que “Yellow Green Crayola”, uma das mais bonitas canções do álbum, foi escrita por causa da personagem.
O exemplo de “Yellow Green Crayola” mostra que algo mudou para os victoria desde Em ponto morto. Se antes a música do duo partia muito do que Francisco sentia e vivia – principalmente, os seus infortúnios amorosos –, em Color Schemes For Kitchens a música tenta ir além do tema corriqueiro do amor. O amor até pode ser universal, mas a universalidade cantada pelos victoria em Color Schemes For Kitchens é outra. Isto resulta num álbum que funciona como uma espécie de um came of age, um onde Francisco e Paulo se apercebem que, apesar de ainda serem jovens com muito a viver e sofrer, já não são assim tão jovens. Há escolhas a fazer na vida.
“Queria fugir um pouco das minhas dores para escrever sobre coisas mais gerais”, afirma Francisco. Para Francisco, era importante que neste álbum de victoria não usasse o sujeito “eu”. O intuito? Aproximar-se de um dos outros objetivos do projeto de victoria: “construir pontes”. Todavia, eis a questão: é possível construir pontes a partir de uma reflexão sobre esquemas de cores para cozinhas? Com música como a dos victoria, talvez.
Nas canções de Loopbook e de Em ponto morto, Francisco e Paulo, com a ajuda dos seus amigos, passaram muito tempo a experimentar que tipo de banda queriam ser. Particularmente nos quatro capítulos de Loopbook, encontramos malhas que se aproximam de pós-hardcore a la Fugazi (“mobydick”, “patti pt. 2”), folk perdido entre Phoebe Bridgers e Sufjan Stevens (“patti”, “but yesterday”), e eletrónica que lembra as brincadeiras dos The 1975 com o género (“the lonely dancer”, “copycat”).
No curta-duração Em ponto morto, os victoria declaram que “O fim do mundo vai ser em cuecas” em “Dá-me uma palhinha (como se ‘tivesse internado)”. Depois, conjugam esse mesmo fim do mundo no eterno emo de “Música da Inês”. Até o lançamento de Em ponto morto, “Música da Inês” era o melhor tema da banda. Agora, a melhor música de victoria é uma que faz parte de Color Schemes For Kitchens. “Estapafúrdio” é a única canção sobre amor do álbum, a única que fala num “eu”, e a canção mais emo de todo o disco. É o clímax do longa-duração. Daí para a frente, em “Tela I” e “Tela III”, os victoria estão apenas em ressaca emocional, a lidar com as consequências do que se segue para a sua vida. Ainda é permitido falhar no amor depois dos 27?
O facto dos victoria serem, por defeito, uma banda de emo é explicado pela insularidade dos lugares onde cresceu o duo. Ainda antes de se conhecerem na ESAD das Caldas da Rainha, já Francisco e Paulo tinham muito em comum sem saberem, coisas em comum o suficiente para o universo delinear um caminho onde se encontrariam e fariam música em conjunto. Ambos cresceram dentro do catolicismo – Francisco tocou órgão de tubos na igreja e guitarra em grupos de jovens, Paulo tocou em bandas de rock católico, e quando ambos se aperceberam da sua insularidade, perceberam que tinham de sair dos sítios onde cresceram para florirem como indivíduos. “Não tinha sido possível fazer victoria se eu e o Paulo não tivéssemos saído dos sítios onde crescemos”, afirma Francisco. “Senti mesmo essa necessidade”, conclui.
De certa forma, muita da discografia dos victoria é uma análise à relação de amor/ódio que existe dos seus membros perante os lugares onde cresceram (definição de emo roubadíssima a este artigo sobre os 30 anos do Shmap’n Shmazz). Talvez a verdadeira razão para a existência de Color Schemes For Kitchens seja não só porque Francisco e Paulo se aperceberam que já não são assim tão jovens, mas também porque ambos agora, na idade adulta, estão ainda a lidar com as consequências da sua própria marginalidade.
Em “Tempos mortos (sei tudo de cor)”, canção dividida com Carlos Sanches que soa a B Fachada meets Brave Little Abacus (a grande referência para a criação de Color Schemes For Kitchens), Francisco canta: “É nestes dias mais normais / Que sinto o peso / É nestes dias tão iguais”. São versos sobre a repetição eterna de tentar chegar a um lado apesar da sua – e da nossa – insularidade, tentativas essas que caem sempre entre o falhanço total – espelhado em canções como “Estaparfúrdio” ou “#13” – e a euforia, representada por canções como ”People, no arms”, que bem lembra o seminal Peripheral Vision dos Turnover. Há mesmo muito fourth wave emo (revivalismo do género que marcou a década de 2010) espelhado na música dos victoria - de Turnover a Brave Little Abacus, de The Hotelier aos Title Fight.
Com os toques experimentais que já é possível de escutar ao longo de Color Schemes For Kitchens, não restam dúvidas de que os victoria estão a caminhar na mesma direção para onde o emo caminha. A experimentalidade de bandas como os Glass Beach ou até mesmo Dispirited Spirits é a mesma que ecoa na música de Francisco e Paulo. Os victoria – e a personagem victoria – podem ser o que quiserem, onde quiserem, quando quiserem. A liberdade que cantam nas suas emotivas canções é aquela que almejamos ter. Para sermos quem quisermos, para cantarmos o que quisermos, sobre o que quisermos. Que a sua tela onde pintam as suas célebres canções seja a mesma onde derramamos as nossas lágrimas a ouvi-las. Assim foi e assim será.
Os victoria apresentam Color Schemes For Kitchens em Lisboa a 11 de setembro na Casa do Comum.
Podem adquirir Color Schemes For Kitchens na página de Bandcamp dos victoria.