Clave de Sons #17: Entrevista com a associação cultural Timbuktu
Terminei a edição anterior da newsletter a afirmar para se criarem coisas novas. Foi a minha forma de tentar dar um toque esperançoso à situação cultural que se vive na Lisboa decrépita de momento.
Esta newsletter não é sobre Lisboa e os meus textos não são sobre Lisboa. Porém, eu sou um indíviduo que vive em Lisboa e, por isso, acabo por umas quantas vezes movimentar-me mais perto daquilo que está a acontecer em Lisboa. Tento muitas vezes fugir a esse ciclo expondo artistas das margens e de outras periferias, mas muitas vezes é complicado sair desse ciclo quando as pessoas mais próximas de ti estão, essencialmente, no circuito de Lisboa. A máxima de fazer coisas não se aplica apenas a criar novos circuitos na capital, mas também fora da capital. (Escrevi na Playback sobre isso em abril com foco em associações e espaços noturnos que tentam mostrar algo de novo aos seus públicos, como exemplo).
Não têm sido dias fáceis para tentar ter alguma esperança no futuro. Não preciso de dizer nada sobre o assassinato de Odair Moniz às mãos da polícia (mais um - e quem nos protege da polícia, não é verdade?), mas talvez as palavras do António Brito Guterres ofereceram algum alento para tentarmos criar uma alternativa ao “Estado” a que isto chegou. Esperança? Pouca. Vontade de fazer coisas? Muita. Mas para quê, não é?
Acho que toda a gente devia ler o ensaio Left-wing Melancholia assinado por Nihal El Aasar na revista Parapraxis. É sobre a Palestina, mas é também sobre melancolia nos movimentos de esquerda. Penso que oferece também algum amâgo nestes tempos para não desistirmos da luta coletiva.
Nesta edição na Clave de Sons, dias antes do final do mês (que vai ter entrevista e recomendações!), sentei-me para falar com José Cruz e Inês Matos (aka Inóspita) para falar sobre a associação cultural Timbuktu, onde ambos os músicos estão envolvidos.
A Timbuktu iniciou atividade há cerca de um ano, em finais de 2023. Entre a editora, uma programação mais ou menos constante, e agora um festival com o intuito de celebrar o primeiro aniversário da associação, a Timbuktu tem ocupado um espaço interessante entre o (indie) rock e o jazz em Lisboa, numa altura em que ambos esses circuitos encontram-se num limbo estranho. O (indie) rock, pelo desaparecimento de salas de espetáculo e de festivais (mega rip Super Bock em Stock), e o jazz, pela inatividade algo forçada do Hot Clube (e também pelo desaparecimento de salas de espetáculo).
Falem-me um pouco sobre a história da Timbuktu. Quando surgiu a associação?
[José Cruz] Os planos para a associação começaram a desenvolver-se em 2023 comigo, com o André Fernandes e com o Zé Almeida. Começamos em conjunto a matutar algumas ideias e tivemos a ideia de desenvolver um projeto em que, acima de tudo, a premissa maior foi de que seria musicalmente diversificado. O próprio cartaz do festival demonstra isso. Não se encontra fechado num só género musical e é uma coisa assim aberta. Mas no final de 2023, e o André tratamos da parte mais burocrática de abrir a sede da associação e tudo mais e começamos a tratar de arrancar com os projetos da associação. A primeira coisa mais palpável que acontece é o surgimento da editora Timbuktu Records logo no início de 2014. Lançamentos cinco discos para arrancar com o projeto e fizemos uma listening party no estúdio, que é também a nossa sede. Os discos lançados foi um do André, com o projeto FOCA, um meu, um disco a solo do Carlos Azevedo, que é um pianista e compositor do Porto, um disco da Akiko Pavolka, que é uma pianista que vive em Nova Iorque, e de Gatosol, que é um projeto que junta o Chinaskee ao canalzero. Na realidade, acho que esses lançamentos foram um bom pontapé de saída para demonstrar as intenções da associação, porque são cinco discos muito diferentes entre si. O meu disco vai bater numa linguagem contemporânea de jazz, o projeto de FOCA envolve sons de eletrónica, o disco de Gatosol é uma cena meio noise, o disco do Carlos é uma espécie de compilação com cenas que ele tinha par alá perdidas, e o disco da Akiko é um disco de rock para todos os efeitos. Além disso, começamos ao longo deste ano a programar concertos na nossa sede e a fazer sessões no estúdio também. Para nós, ao início, acabou por ser mais fácil ligarmo-nos ao universo do jazz porque era nesse universo onde maior parte de nós estamos mergulhados. Foi por isso que por volta de fevereiro começamos a chatear pessoas como a Inês porque ela era uma mais valia para nós porque começou a trazer malta de outros universos musicais, particularmente do rock, que é um mundo onde a Inês está mais submersa.
[Inês Matos] Tivemos as Anarchicks-
[José] Sim, e o Filipe Graça. Conseguimos ir construindo a tal diversidade musical entre os concertos que vamos programando na associação. E isto tudo é um projeto que é intenso porque abrir uma associação dá trabalho, principalmente numa fase inicial. Há muita coisa que tens de fazer por amor à camisola. Já tivemos a iniciativa da editora, dos concertos que vamos retomar em outubro também, e já conseguimos desenvolver uma parceria com um clube de jazz de Lisboa, que é o So What. Fizemos um workshop de verão durante uma semana com vários músicos de jazz ali no estúdio também. E agora o festival vai ser o culminar deste primeiro de atividades da associação.
Que dificuldades e benesses têm encontrado com a gestão da vida da associação em Lisboa ao longo deste ano?
[José] As pessoas que estão mais ativas no trabalho associativo da Timbuktu são artistas. Ou seja, isto para dizer que a ginástica principal do processo é, na minha opinião, dado que a associação ainda se encontra em fase inicial, não termos fundo de maneio. Para fazer as coisas acontecer, é preciso dinheiro, não é? Portanto, o maior encargo é percebermos como vamos dar ao máximo condições às pessoas que convidamos para as atividades que programamos, tanto a nível de valor que pagamos, tanto a forma como recebemos as pessoas. E depois, o público. Não conseguimos obrigar que as pessoas apareceram, não é? Já tivemos de arranjar diferentes maneiras de colmatarmos o facto de não conseguirmos encher uma sala. Começamos a oferecer a gravação do concerto no estúdio, até com vídeo a acompanhar, para também tentarmos dar um bocadinho de maior apoio aos artistas que convidamos. Até porque o estúdio tem um espaço limitado. Cabem lá só 20, 25 pessoas. E independentemente do preço que colocamos para o concerto, temos também de disponibilizar horas do nosso dia para irmos para lá montar o estaminé e no final temos de desmontar tudo porque no dia a seguir há outras atividades no estúdio. Utilizamos os nossos recursos e contactos da forma como podemos. Cada pessoa pega naquilo que tem e contribui ao máximo com o que possível para, pelo menos nesta fase inicial, desenvolvermos a associação e fazemos chegá-la às pessoas.
[Inês] Fazemos o que conseguimos com o pouco que temos, não é?
[José] Sim, isto é uma coisa que sai do pelo. E tendo em conta que o projeto nem tem um ano…
[Inês] Já fizemos umas coisas giras.
[José] Já fizemos acontecer cenas muito fixes e agora temos o festival também. Por outro lado, é fixe que a associação simplesmente exista. Por outro, é bom saber que a malta tem a consciência de que isto é um projeto que está a arrancar. Por exemplo, o Mário Laginha, que vai tocar em trio no segundo dia do festival, é um bom exemplo disso. Acho que grande parte dos músicos tem consciência disso porque toda a gente já esteve em fase inicial de carreira e sabe o quão difícil é fazer crescer o que quer que seja e que abébias isso envolve por amor à camisola. Saber isso dá um bocado mais de força a um gajo se tiver de passar hora e meia numa loja de fotocópias para fazer umas impressões [risos]. Um gajo não está sozinho nisto.
[Inês] Há empatia em torno da associação e isso é bonito de se ver.
Como decidem que eventos organizar pela associação? Existe alguém mais responsável por esse lado da programação ou é algo que decidem em conjunto?
[Inês] Existe a abertura para cada um de nós poder mandar bitaites, digamos assim. Não há propriamente ninguém a mandar mais que os outros, sendo que estamos sempre bastantes abertos a ouvir opiniões uns dos outros e isso é bastante fixe.
[José] É isso. Sempre que alguém faz alguma coisa, apresenta à malta e mandamos bitaites. Porém, para as coisas acontecerem, tarefas têm de ser delegadas. Uma pessoa fica encarregue de algo e se precisar de ajuda, pede. Por exemplo, o Zé Almeida está mais encarregue de tratar dos artistas e da programação ligada ao jazz e há vezes que ele vem falar connosco a perguntar o que achávamos de uma ideia dele. Há sempre esta ginástica de bola para lá, bola para cá entre nós. Se toda a gente sentisse a responsabilidade de que todos estão a tratar de tudo, ia acabar por ser bué overwhelming desnecessariamente. Ou seja, é preferível que as coisas funcionassem assim. Cada um sabe das 20 batatas que tem de se tratar, 18 estão na mão de cada um e se for preciso tratar das outras duas, alguém aparece para ajudar.
Que papel sentem que associações como a Timbuktu podem ter numa Lisboa onde existe cada vez menos espaço para a cultura associativa?
[José] Acho que a dada altura é tentar antever algo que nos vai fugir sempre ao controlo. Ou seja, quando estamos a passar como uma situação como aquela que estamos a passar agora em Lisboa, temos de viver um dia de cada vez porque não existe ainda uma estrutura que esteja definida para a associação. Por muitas ideias que temos, temos de pensar passo a passo. Falo por mim, mas algo que dá vontade de continuar a fazer coisas, e é quase um mote que tenho, é que não estou a tentar fazer nada de mal ao mundo, por assim dizer. Estou a tentar acreditar que isto pode genuinamente ser benéfico para uma pessoa que seja, mas é impossível sabermos isso. É um tiro no escuro, portanto. Se algo que nós fizermos enquanto associação influenciar o dia de 1000 pessoas, fixe. Se isso acontecer com 20, fixe também. Acho que mais do que pensar nisso, aquilo que estou a pensar é que quero criar oportunidades com isto. Não sei que dimensões essas oportunidades vão ter, se vão ser um tiro no pé ou não, mas é isso que quero. É algo em que acreditamos. Ou seja, é impossível não existir uma ligação emocional àquilo que estamos a tentar fazer. Se fosse uma coisa puramente racional, se calhar já tínhamos parado porque muito do que estamos a fazer é por amor à camisola. Estamos a perder tempo do nosso tempo pessoal para estarmos a fazer certas coisas acontecer. Acho que é por causa disso que continuamos a fazer coisas. De boas intenções as ações estão claramente minadas, mas as consequências que isso terá na sociedade? É um bolo demasiado grande para conseguir ter uma ideia do que vai acontecer. A associação ainda é uma coisa demasiado pequena para, pelo menos para mim, pensar as coisas nessas dimensões macro. Mas quem sabe, um dia.
[Inês] Na parte indie, sabemos que temos sítios a fechar e, mesmo na malta do jazz, o Hot Clube, para todos os efeitos, não está a ter programação. Acho que isso nos está a fazer procurar ouros sítios. Resumidamente, nós continuamos, enquanto artistas, a querer que a arte esteja na rua de alguma forma. E mesmo que isto comece por amor à camisola, acho que estes projetos têm de necessidade de acontecer por causa disso. O facto de uma Lisboa que conhecemos estar a desaparecer dá iniciativa a que os artistas se juntem e façamos estas coisas acontecerem. As cenas podem estar a fechar, mas vamos tentar fazer coisas novas e bonitas acontecerem. Acho que são estas associações embrionárias, que ainda estão em fase inicial, que podem influenciar seja 20 ou 1000 pessoas.
Que se pode esperar destes dois dias de festival e celebração da Timbuktu e que se segue para a associação?
[Inês] Estamos a precisar mesmo do apoio da malta e estabelecemos o preço dos bilhetes a pensar nisso. Num dia, temos Chinaskee para abanar cenas e a minha estreia a passar som. Estou a preparar uma playlist bué oscilante para irritar toda a gente [risos]. Nesse dia, o Zé também vai tocar o disco dele, e o André Santos vai tocar com o projeto Vereda, que é também uma espécie de jazz-rock. No segundo dia, a Akiko toca o tal disco dela mais rockeiro, e toca o Mário Laginha em formato trio e o Sr. Maia. Depois, para contrastar, o Chinaskee e o canalzero vão apresentar o seu DJ set, que certamente vai ser de abanar o rabiosque [risos]. Acho que todas as horas vão ser diferentes e acho que é esse o objetivo.
[José] Vai ser um bom exemplo de uma noite onde as coisas vão fluir mesmo que não batam a bota com a perdigota, mas que vai ter um fio condutor que permite que sejam duas noites coerentes.
O Festival Timbuktu realiza-se nos dias 29 e 30 de outubro no 8 Marvila. Os bilhetes podem ser adquiridos aqui.