Clave de Sons #19: Uma década de Conjunto Corona, as confirmações do NOS Alive e recomendações de novembro
Quando comecei a escrever esta edição da Clave de Sons, a ideia inicial era escrever só sobre os Corona e, talvez, falar um bocadinho sobre a minha ida a Madrid para ver os DIIV. Sobre os DIIV: foi bom! Incrível! Nunca tinha viajado a outra cidade com o propósito de assistir a um concerto, mas a experiência valeu pena. Tê-la feito com um dos meus melhores amigos só ajudou à festa. Grandes canções, grande banda, enorme concerto. Viva o shoegaze e o reverb, a androginia e a catarse coletiva. Os DIIV têm muito disso na sua música e ainda bem. Frog in Boiling Water é um dos meus discos do ano (spoiler pré-listas!).
Todavia, depois comecei a pensar no cartaz do NOS Alive do próximo ano de forma incessante. Genuinamente, estou abesbílico com os artistas anunciados até agora. Para começar, é 2024. Por favor, parem de anunciar artistas às mijinhas. É desesperante. Segundo, as confirmações: Olivia Rodrigo (bom! Excelente!), Future Islands (bom!), The Backseat Lovers (quem?), Artemas (TikTok), Noah Kahan (só sei quem é por causa do ToddInTheShadows), CMAT (fixe, mas não é para mim), Benson Boone (quem?), St. Vincent (fixe!), The Teskey Brothers (quem?), girl in red (arroz), Amyl and the Sniffers (arroz), Glass Animals (é merda) e Mark Ambor (genuinamente, outra vez, quem?).
Não quero parecer um velho do Restelo ou continuar na minha aventura à Homer Simpson de andar com um cartaz pelas ruas de Lisboa a dizer que os festivais de verão vão acabar…, mas…. Este cartaz dá a vibe de que foi gerado por inteligência artificial a partir do número de streams do Spotify dos artistas. Não há outra explicação. Ou será que o modelo de booking para o NOS Alive passou a ser, citando o meu amigo Gonçalo Caeiro, o “Billboard100Fest”? Será que, como não ouço Rádio Comercial ou RFM, não sei que estas rádios andam a passar êxitos do Tiktok e malhas do Noah Kahan? Será que sou eu o burro e o desinformado aqui? Ou será que a Everything is New percebeu que o verdadeiro valor do circuito está em concertos a nome próprio já que os festivais de verão estão a caminho do abismo?
Olhando para o cartaz do Primavera Sound (ignorem grande parte dos nomes portugueses e a porcaria da invenção do domingo da eletrónica) e dos primeiros nomes de Paredes de Coura (não perguntem à Música no Coração o que se passa no canto deles), a curadoria parece estar lá ainda e há um equilibro maior entre as novas versões da indústria (pós-TikTok) e a antiga versão da indústria que ajudou a popularizar os festivais de música durante a década de 2010 (Pitchfork-core). No Alive de 2025, não. Não vejo esse equilíbrio. Será que, como se fala, a Everything is New tem Linkin Park ou Green Day no bolso e, por isso, pode encher o festival de entulho que vai esgotar de qualquer forma? Será que o Alive, por se ter tornado uma versão anual do modelo de negócio do Rock in Rio, assente em publicidade e não em música, não precisa mais de vender bilhetes para ter lucro? O Coachella de 2025, curiosamente, tem um cartaz miserável e, depois de não ter esgotado em 2024, há indícios que o mesmo se vai repetir em 2025. A saturação parece evidente e continuar a bater no ceguinho só o vai fazer morrer mais rápido. Quem diria.
Recomendações de novembro
LEFT., Limbo – Não se deixem enganar pelo conceito cringe do álbum. Limbo é um excelente disco, o melhor de LEFT. a solo até ao momento, e a prova de que os autores ligados à AVALANCHE ainda têm muito juice além de vibes imaculadas.
PIPA DE MA$$A, não foi só uma fase :( – É verdade que o pós-irónico encontra-se esgotado (fruto da sua própria hipersaturação), mas o mais recente EP da autora de “beto de Vilamoura <3” é tão parvo que é bom. Querem descobrir a que soam os Per7ume em formato hyperpop? Podem agora fazê-lo. Demasiado engraçado para não recomendar.
Man/Woman/Chainsaw, Eazy Peazy – Os Man/Woman/Chainsaw, além do nome pomposo, são a nova coqueluche do rock britânico, os herdeiros diretos dos black midi e dos BC,NR. Um EP de estreia excelente e espero vê-los em 2025 por terras portuguesas para o apresentar.
Bia Maria, Qualquer Um Pode Cantar – Se dúvidas existiam de que Bia Maria é das melhores cantautoras deste país, Qualquer Um Pode Cantar dissipa-as completamente. Um disco recheado de grandes cantigas e uma estreia que só peca por tardia. Qualquer um pode cantar, é verdade, e qualquer um pode - aliás, deve - ouvir Bia Maria.
claire rousay, The Bloody Lady – Se sentiment foi o devaneio cantautor de claire rousay, The Bloody Lady retorna-a ao ambient que tanto executa com perfeição. Um belíssimo disco.
CAIO, Ritmo da Procura – CAIO partiu à procura de canções e encontrou-as. O melhor trabalho até ao momento do cantautor lisboeta.
Yves, I Did – Algumas das melhores canções de K-Pop do ano estão neste EP da integrante do girl group LOONA.
MaZela, Desgostos em Canções de Colo – O EP de estreia de MaZela está preenchido por canções tristes, muito tristes, e todas merecem ser ouvidas com ouvidos de quem irá chorar por elas.
Caixa Cubo, Modo Avião – Jazz bem catida oriundo do Brasil. Para quem gosta de MPB dos anos 80 e de jazz fusion tipo YAKUZA.
Sofie Royer, Young-Girl Forever – Quem dera à Grimes ter escrito estas canções hoje em dia. Maravilhas pop a acontecer.
Father John Misty, Mahashmashana – O Padre João Nublado regressou aos álbuns e regressou com aquele que é o seu melhor trabalho desde os tempos de I Love You, Honeybear.
Kendrick Lamar, GNX – Para aqueles que não adoraram Mr. Morale & The Big Steppers, como eu, GNX é o álbum/mixtape que Kendrick precisava de colocar cá fora. No ano mais triunfante da sua carreira, fruto da troca de bitaites com Drake, o autor de To Pimp a Butterfly agarra a onda do hip-hop contemporâneo da West Coast (a influência do saudoso Drakeo the Ruler é pura e demais óbvia) para um dos melhores projetos de hip-hop do ano. Onde está a linha entre homenagem e pastiche? Fica para cada um descobrir.
Orca, Não Há Tempo – No seu novo EP, Orca continua a provar que é uma das cantautoras (peço desculpa pelo abuso da palavra nesta edição) mais promissoras da cena independente portuguesa. Bonitas cantigas, estas. Merecem ser escutadas com toda a atenção.
Poppy, Negative Spaces – Sim, tem algum filler lá para o meio, mas raios e coriscos, este novo álbum da Poppy tem muito banger. O melhor disco dela desde I Disagree e algum do melhor pop metal que anda por aí.
Wugori & Pedra, Raio de Luz – No laboratório, Wugori e Pedra juntaram-se para alguma da melhor alquimia sonora que o hip-hop tuga tem para oferecer em 2024. Grandes malhas. E se não acreditem em mim, acreditem no meu colega de casa que simplesmente disse o seguinte: “grandes sons, foda-se”. Tudo dito.
Afonso Cabral, Demorar – Quem gosta de Bruno Pernadas, tem obrigação de ouvir o álbum de estreia a solo (ERRATA: novo álbum) de Afonso Cabral. Bom disco, sim senhora.
Ilusão Gótica, Privação Trópica – Os Ilusão Gótica são os Conferência Inferno em modo anarquia total. Aqui, não há canções, mas sim ideias, registos, odisseias sonoras que nos colocam a par da aura experimental do trio de badwave do Porto. Bom álbum.
Homecomings, see you, frail angel. sea adore you. – Um dos melhores discos de rock do ano. Parem. Escutem. Não olhem. Escutem outra vez. Se morrerem a ouvir isto, morrem felizes.
Boogarins, Bacuri – Os Boogarins ainda têm alguma magia para dar neste seu novo álbum. Para os fãs da banda, vão adorar. Para quem não conhece, é escutar com atenção.
J/A, alibi – Há ainda muito a percorrer para J/A (Jorge Antunes), mas alibi apresenta um dos projetos mais promissores do novo pós-hardcore português. Boas malhas.
bbb hairdryer, A Single Mother / A Single Woman / An Only Child – Não vai entrar à primeira. Isso é uma garantia. Mas quando entrar, o novo álbum de bbb hairdryer revela-se como uma chama que arde se vê no seio do emo português atual. Prometo.
Divã, Filho Prodígio – Os Divã ainda têm de encontrar a sua identidade própria, mas o EP de estreia da banda sediada na Amadora revela algum do pós-punk gótico mais efervescente em muito tempo cantado em português.
Uma década de peripécias com os Conjunto Corona
No final de outubro, os Conjunto Corona celebraram dez anos de carreira com dois concertos especiais. Primeiro, em Lisboa, no LAV, a 26, e depois outro no Hard Club, no Porto, na noite das bruxas (31).
Por azar meu, não consegui ir a nenhum dos dois concertos. Isto significa duas coisas. 1) posso ter faltado àqueles que podem muito bem ter sido os últimos concertos de Corona. 2) ainda não consegui ver Corona ao vivo no Porto, algo que me deixa profundamente insatisfeito.
Quando era um adolescente com desejos de ir estudar informática para a FEUP, o meu imaginário da Cidade Invicta foi muito construído com a ajuda dos primeiros álbuns de Corona. Apesar de ter crescido relativamente perto do Porto, ir à metrópole não era propriamente algo que acontecia regularmente. Vivia a 40 minutos de carro, mas, por questões de disponibilidade, era muito complicado ir ao Porto. Portanto, o Porto, durante muito tempo, foi um sítio que parecia tão perto e, simultaneamente, distante.
Então, a música dos Corona, ao lado de grupos como os GNR (olá Psicopátria) ou os Clã (oi Lustro), ajudavam a pintar a imagem de um Porto na tela da minha mente. Antes de existir o Porto enquanto sentimento na minha cabeça, existia o Porto boémio, local efervescente recheado de histórias em todos os cantos, cheio de personagens caricatas prontas a alimentar o universo de dB, Logos e do Homem do Robe. Na minha mente, o Porto era os retratos analógicos hipsterianos pintados em Lo-Fi Hipster Sheat (2014) e Lo-Fi Hipster Trip (2015), os Super Dragões, as rotundas com chungas a puxar canhão ao lado, as dancetarias, os tunings a andarem rápido noite dentro.
Entre 2014 e 2016, eu e mais malta juntávamo-nos em sessões de plug.dj para partilhar música que andávamos a ouvir. Se a memória não me falha, algures no início de 2016 um amigo meu de Gondomar meteu a rodar o Lo-Fi Hipster Trip e adorei imediatamente aqueles sons. Instrumentais super lo-fi-psicadélicos, o flow específico e carregado de sotaque do Logos e do dB, uma espécie de camaradagem que a música emanava. Era música para juntar os amigos e puxar essa e parecia música criada a partir de puxar essa entre amigos. E foi entre amigos que descobri os Corona e foi sempre com amigos que vivi o percurso dos Corona enquanto fã e, mais tarde, crítico. Fiquei obcecado com os Corona e lembro-me de passar horas a ver clípes no Youtube de dB e Logos a fazerem coronazices.
Sempre gostei bastante dos dois primeiros discos dos Corona e menos de Cimo de Vila Velvet Cantina (2016). Contudo, mantenho a opinião que foi ao quarto álbum que os Corona atingiram o seu pico criativo. Com Santa Rita Lifestyle (2018), dB e Logos combinaram o universo psicadélico dos dois primeiros discos com o formato canção. A vibe estava no ponto, o pavio com o rácio perfeito entre verdinha e tabaco, e a viagem de Corona até à rotunda de Santa Rita revelou-se como uma etapa que cristalizou o sentimento que os Corona pregavam em Lo-Fi Hipster Sheat, a tal odisseia hipsteriana servida em modo cocktail analógico supracitada. É sabido que não sou um enorme fã de G de Gandim (2021), o devaneio pelo reggaeton dos Corona, mas ESTILVS MISTICVS (2023) trouxe de volta os Corona de antigamente. Escrevi no Rimas e Batidas ainda umas quantas palavas sobre esse álbum, mas o resumo é o seguinte. Se ESTILVS MISTICVS foi o último disco dos Corona, foi uma forma mais do que digna de se despedirem.
Com estes concertos, surge novo questionamento: terá sido esta a última vez que dB, Logos e o Homem do Robe serviram hidromel aos seus devotos? Continuo a achar que, pelo menos durante algum tempo, sim. Não é que Corona tenha visto a luz branca de vez, mas a vida de dB e Logos não é a mesma de há dez anos nem sequer de há cinco anos. As suas carreiras, particularmente a de David Bruno, transformaram-se. E há crédito em saber quando encerrar um capítulo em vez de se se tornar pastiche dele mesmo (recomendo ao próprio David fazer a mesma introspeção para o projeto de David Bruno). Para um projeto como Corona, este risco é real porque o projeto sempre assentou em fundações tão específicas e em lore tão específica que nunca seria demasiado complicado tornar-se paródia. Corona sempre foi um projeto sério musicalmente, mas nunca se levou demasiado a sério. Quando tentou, como é o caso de G de Gandim, a coisa não correu tão bem como antes. E parte do sucesso de Corona sempre esteve no equilibro entre ser sério, mas não demasiado sério. É essa energia relaxada que ajudou a que os Corona se tornassem um dos grupos mais influentes e acarinhados da última década de hip-hop tuga. Quando escutamos as produções de malta ligada a ensemblu, não duvidem que o DNA dos Corona continua por aí espalhado, capaz de inspirar novos produtores e MCs no Norte do país – e não só.
Ao longo destes dez anos, os Corona tornaram-se o grupo de hip-hop favorito do vosso amigo hipster favorito. Isso talvez tenha sido o maior trunfo do conjunto do Grande Porto face a outros nomes que surgiram no panorama do hip-hop alternativo de meados da década, como zé menos (na altura, como Kap), L-Ali, ou nomes ligados a COLÓNIA CALÚNIA. Contrariamente a alguns destes nomes, os Corona envergaram com grande sucesso pelo circuito do underground alternativo, tocando tanto em festivais como Paredes de Coura, NOS Alive ou Primavera Sound Porto como no Tremor ou Milhões de Festa e em muitos dos festivais de média dimensão portugueses. Tocaram no Iminente e tiveram os Ganso a abrir para eles quando apresentaram Vila Velvet Cantina no Musicbox em 2016. Tocaram nas Damas. Tocaram em muito spot do undergredo pelo país. Serviram de ponte entre a Meifumado e o novo hip-hop alternativo que brotou depois na tuga.
Corona sempre foi mais que rap, mais que hip-hop. Corona foi punk, psicadélico, rock, hipster. Ainda é. Por tudo isto e mais, só podemos estar felizes por termos vivido estes dez anos de peripécias de Corona. Se as meias vão continuar a ser usadas na cabeça e se o hidromel continuará a ser bebido, o tempo ditará. Haveremos de descobrir.